O primeiro dia do julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e dos demais sete réus do "núcleo crucial" da trama golpista de 8 de janeiro foi marcado por uma fala inicial contundente do ministro Alexandre de Moraes, relator da ação no Supremo Tribunal Federal (STF). Moraes fez questão de rechaçar pedidos de anistia, apontar pressões externas sobre a Corte e defender a legitimidade do processo.
Para o cientista político Paulo Nicoli Ramirez, em entrevista ao Terra, os movimentos do ministro vão além da técnica jurídica: revelam sinais políticos e estratégicos que podem se refletir tanto no relatório quanto no desfecho do julgamento e outros processos.
Rejeição da anistia
Logo de início, Moraes descartou a possibilidade de perdão aos envolvidos, afirmando que "impunidade, omissão e covardia não são opções para a pacificação". Segundo Nicoli, esse recado foi dado em meio a movimentações no Congresso por parte de aliados de Bolsonaro.
"Houve uma movimentação da extrema-direita bolsonarista junto com o Centrão, planejando uma alternativa de anistia dentro do Congresso [...]. O Alexandre de Moraes se antecipou aos fatos, mostrando e sabendo dessa articulação, que não é plausível, de um ponto de vista constitucional, que haja anistia para uma tentativa de usurpação do Estado Democrático de Direito".
O cientista avalia que a fala de Moraes se distancia da ideia de juiz "isento do ponto de vista político" e reforça a excepcionalidade do processo. "O que Alexandre de Moraes quis dizer é que a própria Justiça não pode se omitir em instantes de perigo".
Construção da memória institucional e histórico do golpe
Moraes deixou claro que o julgamento também tem caráter pedagógico e histórico ao estabelecer a narrativa do 8 de janeiro e da tentativa de golpe.
"Este processo contra o Bolsonaro não é um processo comum, é um processo excepcional, uma vez que se tratava de uma tentativa de angariar um Estado de exceção, antidemocrático, o Judiciário é o último expoente de condição de guardião da democracia e será a partir da Justiça que as próprias leis continuarão imperando acima de aventuras pessoais e antidemocráticas".
STF blindado
O ministro fez questão de ressaltar que o julgamento respeitará "o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório". Para Ramirez, o gesto foi calculado para proteger a Corte de acusações de parcialidade.
"Claro que o Alexandre de Moraes pretende blindar o STF de eventuais críticas, por isso há provas substanciais, vários documentos, relatos, delações, inclusive do Mauro Cid. Não houve precipitações jurídicas, como no caso do Lula", afirma. Na comparação com o julgamento do petista, o cientista político observa que Moraes "deu todas as condições para que o réu, no caso o Bolsonaro, estivesse livre um bom momento, quase todo o período do processo".
Estratégia interna
Outro gesto simbólico foi o elogio à "honrosa participação" do ministro Luiz Fux, visto por apoiadores de Bolsonaro como possível aliado dentro do STF. Para Ramirez, a cortesia tem um cálculo político: "Todo relator tem como objetivo convencer os demais juízes a respeito da sua tese. E claro que esse convencimento se dá por vários recursos. Um deles é a retórica, outro é o elogio, que constrange o colega a acompanhar o voto".
Segundo ele, a pressão da opinião pública também pesa. "Pesquisas de opinião têm mostrado cerca de 60% a favor da prisão de Bolsonaro. Isso cria um constrangimento adicional caso Fux tente se afastar da maioria".
Novos desdobramentos legais
Ao mencionar tentativas de "submeter o STF ao crivo de outro Estado estrangeiro" e medidas do governo Trump, Moraes sinalizou a gravidade dos atos golpistas em um contexto internacional. Nicoli aponta que qualquer tentativa de cercear a Justiça é crime e pode gerar novas investigações.
"Nenhuma pressão externa, nacional ou internacional, pode tirar da Justiça a autonomia dos seus trabalhos e as conclusões das investigações. Isso é considerado uma ameaça ao Judiciário, e isso pode ser punido através de um outro processo".
Além disso, Moraes mencionou as medidas cautelares impostas ao Bolsonaro e o inquérito que investiga o deputado federal Eduardo Bolsonaro no âmbito de que o "perigo" ainda estaria presente.
Para o especialista, tais aspectos do discurso podem sugerir um processo de "ping-pong" dentro da Justiça brasileira. "O que significa dizer que, ainda que Bolsonaro, nesse processo, seja absolvido ou culpado, pode ser que venham outros processos nas suas costas".