Sabe quando a criança está começando a ser alfabetizada e ainda não consegue ler com ritmo? Em voz alta, ela decifra sílaba por sílaba, bem vagarosamente: “A caaaaa-saaaa é boo-nniii-taa.”
É uma etapa natural do processo de aprendizagem. O problema é que, no Brasil, alunos estão chegando ao 4º ou 5º ano ainda com essa dificuldade, alertam acadêmicos, especialistas em educação e professores ouvidos pelo g1.
????E por que isso é preocupante? Os estudantes levam tanto tempo para chegar ao final de uma frase que esquecem o que estava escrito no comecinho da sentença. Resultado: não conseguem entender histórias, legendas de filmes ou placas de rua.
"No topo de uma montanha solitária, um lobo chamado Lúcio vivia em sua toca. Ele era conhecido por sua feroz natureza e pela solidão..."
➡️Com o tempo, esses estudantes como o do 1º áudio passam a ter dificuldade também nas outras disciplinas da escola – não conseguem ler e interpretar um enunciado de matemática, história ou ciências – e ficam com vergonha de pedir ajuda, sobretudo na adolescência. É uma "bola de neve".
“Na minha turma [de alunos de 9 anos], muitos ainda estão ‘silabando’. Se peço para explicarem o que acabaram de ler, não sabem responder”, conta Raquel Nascimento, professora da rede pública de Campinas (SP).
Depois da pandemia, com o uso ainda mais frequente de telas [leia mais abaixo], houve uma piora sensível também na questão da concentração, diz a docente. "Eles [alunos] perdem o foco antes do fim da frase. Como que lerão um capítulo inteiro?”
Esses podem ser sinais de problemas na fluência leitora, que considera:
velocidade (quantas palavras por minuto são lidas);
precisão (a criança lê corretamente ou acaba confundindo as sílabas e lendo “lua”, em vez de “rua”?);
e entonação (ela faz um tom de pergunta quando tem interrogação? Não dar a “melodia” correta também atrapalha o entendimento).
Os três fatores, aliados ao vocabulário e ao repertório do aluno, são essenciais para a habilidade de interpretação de texto.
“Ser fluente na leitura significa ver uma palavra e entender o sentido dela rapidamente. É preciso ler com expressividade, demonstrando estar compreendendo a frase”, explica Isabel Frade, presidente emérita da Associação Brasileira de Alfabetização e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
????‘Poço sem fundo’: desempenho dos brasileiros em testes de leitura acende alerta
Nos exames oficiais, tanto brasileiros quanto internacionais, o Brasil vem registrando números preocupantes:
Em 2023, na estreia do país no Pirls (Progress in International Reading Literacy Study), 38% dos estudantes brasileiros do 4º ano do ensino fundamental não dominavam as habilidades básicas de leitura. Só 13% foram classificados, segundo a avaliação, como proficientes. Na 39ª posição entre 43 países, o Brasil ficou atrás de nações pobres, como Azerbaijão e Uzbequistão.
Microdados divulgados em 2023 a partir de dados do Pisa (outro exame internacional) mostraram que, em 2018, o texto mais longo lido por 66,3% dos alunos brasileiros de 15 e 16 anos não passava nem de 10 páginas.
No Ideb 2023 (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), que considera conhecimentos de matemática e leitura, o país não bateu a meta que era prevista ainda para 2021 nem no 9º ano do fundamental, nem no 3º do ensino médio.
O problema é que nenhuma dessas avaliações consegue mostrar exatamente qual é o ponto mais crítico: os alunos demoram muito para decifrar as sílabas? Falta vocabulário? Por que não estão entendendo nem conteúdos simples?
➡️Estudo detecta que alunos da rede pública leem mais devagar
Para ter mais pistas sobre a fluência leitora dos alunos brasileiros, pesquisadores de instituições americanas (Universidade Johns Hopkins, Universidade Virgínia, Universidade de Nova York e Quality Leadership) e brasileiras (Fundação Getúlio Vargas, Universidade Federal Rural de Pernambuco, Instituto Ler+ e Escribo) organizaram o seguinte experimento:
gravaram mais de 14 mil alunos (do 2º ao 5º ano, em diferentes estados) lendo textos de 156 palavras (aproximadamente 13 linhas);
contaram quantas palavras eles liam por minuto, avaliaram se estavam dando a entonação correta às frases e testaram se cada um entendeu o conteúdo.
Os resultados do estudo científico, ainda em fase de revisão de pares, mostraram uma diferença significativa: enquanto os alunos de escolas públicas leram, em média, 72 palavras corretas por minuto, os de particulares atingiram a marca de 94.
“O Pisa, por exemplo, não avalia a fluência dos alunos, mas vimos que está tudo interligado: em geral, quando melhoro 10 pontos na fluência, subo 6 pontos na compreensão. Sabemos que investir na fluência não vai ser a salvação, porque é necessário trabalhar vocabulário e conhecimento de mundo, mas já seria uma grande ajuda”, afirma Américo Amorim, pesquisador afiliado da Universidade de Nova York.
Um elemento está associado ao outro: quanto mais a criança ler, mais palavras novas ela conhecerá, declara ao g1 Nuno Crato, economista e ex-ministro da Educação em Portugal.
“Saber ler bem é uma porta para o mundo. Nas nossas conversas à mesa ou no ônibus, temos diálogos limitados: ‘chega aí!”, ‘amanhã, falamos!’. A leitura é que vai nos apresentar a textos mais complexos que dão maior conhecimento do mundo”, diz. “A fluência é um passo essencial para isso.”
????Por que os alunos estão com tanta dificuldade?
Segundo os especialistas ouvidos pelo g1, os fatores determinantes são:
menor acesso a livros por famílias de baixa renda;
formação de professores, em geral, defasada, com cursos de pedagogia que não abordam a alfabetização em profundidade;
falta de atividades lúdicas que explorem relações fonêmicas ainda na educação infantil;
ausência de hábito de leitura por parte das pessoas que convivem com a criança;
período prolongado de fechamento das escolas durante a pandemia;
contato excessivo com telas.
“Em salas de 25 alunos, no 4º ano, a maioria consegue só identificar as letras, mas não as palavras. São diferentes explicações: algumas são neurodivergentes, mas nunca tiveram um diagnóstico. Outras não têm nenhum livro em casa”, conta a professora Rebeca Café, que trabalha em uma escola pública de São Paulo.
“Sinto que as tecnologias trazem tantas facilidades para as crianças que deixam o cérebro delas mais ‘preguiçoso’. Elas conseguem digitar, mas não sabem escrever a lápis.”
A própria Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), em relatório divulgado em julho de 2023, alerta que os celulares estão prejudicando o foco dos estudantes.
Outro estudo, feito pela Universidade de Stavanger, na Noruega, em 2012, diz que apenas "scrollar" um site, em vez de virar a página de um livro físico, atrapalha a memória e prejudica a interpretação.
E a Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, mostrou que esse excesso de tecnologia leva a prejuízos na comunicação, problemas no sono e atrasos no desenvolvimento cognitivo.
????O que fazer para estimular a fluência?
Investir na formação de professores
Américo Amorim reforça a importância melhorar os cursos de licenciatura.
“Recebo muitos relatos de professores que se frustram porque não aprenderam adequadamente sobre alfabetização na faculdade. Alguns só vão conhecer as brincadeiras com sílabas na pós-graduação. Deveríamos investir em uma interdisciplinaridade maior das humanidades: fonoaudiologia, educação e psicologia precisam caminhar juntas”, diz.
Rebeca confirma que, no caso dela, foi preciso buscar outros recursos de formação por conta própria.
“Não se aprende direito a alfabetizar na universidade. A gente precisa procurar especialização – e, em geral, se não tiver poder aquisitivo, não vai receber nenhum estímulo financeiro para ajudar”, relata.
????Propiciar atividades lúdicas e repetidas
Se você não for advogado, vai ter um pouco de dificuldade para ler aqueles textos muito técnicos, cheios de “juridiquês”, certo? Ou, se não for religioso, talvez “empaque” em um trecho da Bíblia.
São exemplos para que você perceba como a familiaridade com determinado gênero textual pode nos ajudar a compreendê-lo mais facilmente.
“Se a criança já viu muitas vezes a estrutura de ‘era uma vez uma princesa que vivia em um castelo’, ela vai se apropriar disso. Quanto mais vezes ela vir uma palavra, mais rapidamente irá reconhecê-la”, esclarece Isabel Frade.
Não significa, claro, que os alunos devam fazer exercícios exaustivos e tediosos de repetição – tudo deve ser lúdico.
Por exemplo: o docente pode escolher uma história para aquela semana de aula. Em alguns momentos, quando for ler em voz alta um trechinho, pode retomar o que estava no começo da narrativa.
“Se forem 5 ou 10 minutos por dia de repetição, de 3 a 4 vezes por semana, já veremos os benefícios da repetição”, afirma Amorim. “Pode ler um parágrafo na 2ª feira e fazer uma roda de conversa, depois voltar ao mesmo trecho na 3ª feira e montar outra atividade divertida. Os circuitos neurais vão criando essa automatização da leitura."
????Preocupar-se sempre com a entonação
Os professores (e os familiares, se puderem) devem sempre se atentar à entonação da leitura: pausas em pontos-finais e vírgulas, tom de pergunta quando há interrogação…
Atividades de teatrinho, por exemplo, ajudam as crianças a prestar atenção no conteúdo e detectar a “emoção” correta do que estão lendo.
????️Sempre monitorar a interpretação de texto
Um exercício comum, na fase inicial da alfabetização, é ir aumentando a frase aos poucos, sempre lendo tudo do começo.
“O gato
O gato tomou
O gato tomou muito
O gato tomou muito leite.”
Se a criança estiver com dificuldade na fluência, vai terminar de ler a última frase sem saber responder quem tomou o leite.
Cabe ao professor tentar descobrir se o problema é a baixa velocidade de leitura (que faz com que o aluno esqueça o que estava no começo da linha) ou a falta de vocabulário/repertório (ele pode nunca ter um visto um gato tomando leite, por exemplo, ou não saber o que uma das palavras significa).
????Traçar diagnósticos constantes
Uma forma simples de avaliar a velocidade de leitura é ligar um cronômetro e contar quantas palavras o aluno lê corretamente por minuto.
No estudo citado mais acima, os estudantes fluentes do 4º ano, em escolas particulares, conseguiram ler 89 termos nesse tempo, e os avançados, 104. Na mesma faixa etária, uma criança iniciante da escola pública decifrou apenas 27 vocábulos.
É claro que não é viável fazer avaliações individuais diariamente, considerando o tempo que cada uma toma e o tamanho das turmas. Mas, com uma frequência bimestral, por exemplo, torna-se mais fácil detectar quais alunos precisam de reforço.
E importante: leituras em voz alta durante as aulas sempre darão pistas sobre o estágio em que a turma se encontra na alfabetização. As avaliações diagnósticas são instrumentos para nortear a dinâmica e o conteúdo do que será trabalhado em sala.
“Eu monto grupos de quatro alunos misturando, em cada um, crianças fluentes e crianças que estão ‘silabando’. Vejo muitos resultados, porque uma colabora com a outra. Quem termina primeiro fica ajudando os demais”, conta a professora Raquel.
????????????????Em casa, os pais podem ajudar?
Sim! Mesmo que você também tenha dificuldades em leitura, pode pedir dicas para a escola de como auxiliar a criança: um jogo educativo feito em casa, por exemplo, tem baixo custo e proporciona a todos um contato prazeroso com as palavras.
Veja outras sugestões:
ler em voz alta (pode ser a própria criança contando uma história ao irmãozinho ou aos pais);
explorar outdoors nas ruas;
buscar vídeos da internet que tenham legenda e conteúdo apropriado;
cantar uma música enquanto acompanha a letra escrita;
passear em livrarias e bibliotecas;
deixar livros ao alcance das crianças em casa e estimular o interesse por eles.